Shame: denso e incômodo

O início de Shame lembra, guardadas as devidas proporções, o de Janela Indiscreta: sem um diálogo sequer, passamos alguns bons minutos conhecendo o protagonista. Alguns poderão sentir um certo incômodo com a escolha do diretor Steve McQueen pelo “silêncio”. No entanto, é de se aplaudir a opção pelo uso das imagens, principal elemento da linguagem cinematográfica, para se comunicar com o espectador. E é com maestria que McQueen usa sua câmera, sempre nos posicionando no lugar certo, seja para comunicar, ou para constranger.

Escrito por Abi Morgan juntamente com o próprio McQueen, Shame acompanha a vida de Brandon Sullivan (Fassbender), um imigrante irlandês que mora em Nova Iorque com uma peculiaridade comportamental: ele é dependente ou, se preferir, viciado em sexo. Brandon é um rapaz reservado ao extremo e seu único relacionamento “afetivo” é com seu chefe babaca. Quando sua irmã mais nova invade sua casa, pouco a pouco seu mundo aparentemente controlado, começa a desmoronar como um castelo de cartas. Com um passado obviamente conturbado, no decorrer da trama percebemos que Sissy (Carey Mulligan) é tão problemática quanto seu irmão.

Shame possui uma narrativa interessantíssima. Mas mais do que uma história, o longa nos apresenta personagens. McQueen utiliza sua câmera (e outros elementos narrativos) para analizar profundamente o comportamento de seus protagonistas. Dito isto, como não notar a bela direção de arte que nos apresenta um cenário cru, frio e com móveis impecavelmente organizados no apartamento de Brandon, retratando, ao mesmo tempo, seu vazio interior e sua obsessão por controle. Ao passo que Sissy, sempre espalhafatosa em seu figurino, denota uma necessidade extrema de atenção por toda a película. E é nesses contrastes que vamos percebendo a crescente irritação do irmão mais velho que aos poucos vê seu lar sendo tomado pelas cores berrantes de Sissy. Palmas também para a fotografia que, quase sempre com cores frias (destaque para o azul), reforça o lado emocional de Brandon e sua visão do mundo.

Outro detalhe que chama bastante a atenção é o posicionamento da câmera, em vários momentos simulando um personagem presente no ambiente (ainda que esse personagem não exista de fato), observando, incomodando e, em alguns momentos, se sentindo incomodado. Para reforçar isso e aumentar a imersão do espectador, o cineasta utiliza em vários momentos uma câmera fixa em longos planos sem corte. Destaque para dois momentos particulares: um em que Brandon está num jantar supostamente romântico e observamos um princípio de conexão do mesmo com outra pessoa. E outro quando o protagonista tem uma conversa com sua irmã e ficamos o tempo inteiro posicionados nas costas dos personagens quase que como intrusos escondidos atrás do sofá.

Todo esse preciosismo técnico não surtiria tanto efeito não fosse o excelente trabalho de atuação do elenco. Fassbender já havia mostrado seu talento ao dar vida a Magneto no divertido X-Men: First Class e, recentemente, no fraco Prometheus. Aqui ele nos presenteia com uma atuação digna de oscar num personagem complexo, que, sempre buscando manter um tom de voz controlado e uma superficial e elegante calma, aos poucos vai perdendo o controle de suas ações. E o que dizer da obsessão por seu objeto de desejo em idas e vindas pelo metrô? Por outro lado, Mulligan nos apresenta um contraponto interessante, na pele de Sissy, que tenta manter o único fio de relacionamento familiar que lhe sobrou. Numa interpretação singela e tocante a atriz transpira fragilidade numa personagem que a todo momento parece a beira do abismo (destaque para a belíssima interpretação de New York, New York).

McQueen não faz concessões para sua análise e, ao posicionar sua câmera, joga, sem pedir licença, o espectador no meio da cena, seja em momentos tocantes ou “chocantes”. Com um início silencioso e um final (calma, não darei spoilers) quase que poético, Shame é um incômodo deleite visual.

Leigômetro: ★★★★☆ 

Ficha Técnica
Shame (2011)
Direção: Steve McQueen
Roteiro: Steve McQueen e Abi Morgan
Elenco: Michael Fassbender, Carey Mulligan, Nicole Beharie, James Badge Dale

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